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segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

algum pedaço quebrado que nos contou...

Tem fome do mundo. Acorda e já quer comer tudo, engole o mundo inteiro e o gospe pra fora, todo em pedacinhos etiquetados. Engole tanto o mundo que geralmente nem tem fome daquele açúcar doce que insistem em lhe dar pra comer. A comida do mundo é aquela coisa dura e azeda, corta seu estômago todo e não para nada dentro de si. Sobra apenas aquele vazio seco e uma certa indigestão de mundo. Ele fica ali no canto da parede suja pelos corpos, pela chuva, pela merda que escorre das casas todas, tudo junto - a chuva sempre traz tudo - engolindo e vomitando a todos. Cercado de rostos rindo e se enchendo cada vez mais daquele doce inventado. Fecha o corpo todo e fica ali feito casulo amarelo, 'dá um berro que não se quer morrer de indigestão'. Suas mãos trêmulas não alcançam nem ao menos o corpo próximo e fica ali a agonizar sozinho. Começa a tocar um som meio torto, sem jeito nem corpo, só com gritos agonizados de quem precisa dizer algo, alguma coisa além de vomitar tudo sem cor. Todos param e parecem regojizar, nos seus estômagos aquele líquido frio já descartado pelo estômago do primeiro. Aquelas luzes amarelas, soltas ao final do dia, levaram-se em grandes ondas à cidade toda e o brilho era tanto que todos cegaram. Ninguém se enxergava e finalmente ninguém se sabia, porque afinal ninguém nunca se tocou. Estavam, durante todos os dias, muito preocupados em fazer doce do que se vivia. Todos viraram pedras secas de açúcares gelados amarelos.

domingo, 2 de novembro de 2008

jardins

Sentou na cadeira e começou a cortar. Os cabelos, sem corte há tempos - não lhe restavam horas, não lhe restava dinheiro -, passados por entre os dedos, nas manhãs-tardes de ressaca no sofá. Cortou os pés que caminhavam pela grama, ao lavar o carro imundo de lama daquele poço de onde vinha todos os dias, onde sugava e jogava sua vida de uma corda repleta de nós. Enquanto isso ela se mantinha em frente ao fogão, a vida toda escrita nas mãos em cortes e cicatrizes sem cura. Dizia-se pura, até quando - momento ao qual lograram à ele certa loucura - ele se viu perdido em uma vontade incurável de mergulha-la naquele poço, com a corda enroscada ao pescoço. Os nós perfurando a pele dela, enquanto ele ejaculava e se deliciava de um prazer inocente. Sua única felicidade acabou quando seus pulsos seguravam o ar, e ela seguia caindo por aquele imenso buraco. Sobraram a ele, os olhos imensos e brancos, dispersos por aquele buraco tão fundo, mas tão fundo, que só não era maior do que o que afirmava carregar no corpo.Embebedou-se daquela porra toda, enquanto ela se arrastava pelos cantos do quarto. Quando acendeu a luz, não havia ninguém. Entre aquelas paredes só restava uma sombra consumida pela culpa. Sobravam-lhe cinco anos da conta que tinha feito aos 35. Foi só o tempo de imendar as feridas, e do fio soltar-se logo que admitiu - não tinha culpa - era o carro mal lavado, o serviço mal pago. Arrastou o fio pelas veias, para encontrar-se no gelo que lhe parecia familiar.

27/08/2008

cidade arranha-céu

Cidade quadrada, chata, dona de um submundo onde quem não tem o que comer, cata. Nos mesmos buracos onde entope água pelos bueiros das ruas que você passa preocupado com o trânsito, dentro da sua mais nova aquisição - Puta que pariu, mas essa cidade não anda! Cidade cheia de pés, que vivem da correria, acordam todo dia sem tempo nem mais pro café - onde tem, para quem tem. Há suborno até do tempo. Tantos pés afundados no concreto, abaixo deles e diante dos olhos. Janelas de vidro se multiplicam, são espelhos e aquecem o que é frio, de ilusão. Quadrados grandiosos e transparentes que enchem as ruas de preto. Avenidas com carros amontoados, nos cantos, caindo pelos barrancos, nos mesmos onde crianças dormem no chão, onde não há colchão, nas casas empilhadas de quem em lugar de talher guarda enxada - Pra quem cata, ter o que comer já é mérito. Encontro crédito em cada esquina, onde dinheiro parece cair do céu e na verdade é para outro lado, buraco sem fundo.No final da noite, seja zona norte ou sul, empilhados sobre o chão em frente à padaria ou à beira da cama, todos terminam em frente à tv.Deslizo pelos cabos da cidade dos arranha-céus. É tanta luz que todos ficaram cegos.

10/04/2008

fazer-se de calos do tempo

De seu ventre nasceram três. Valentina, nascida de valentia, carregava as três estrelas de Maria, que do céu só viram as cores bem mais tarde pela janela, à beira da pia. No caminho só a passagem, comprovante de estar sozinha por mais um mês à segurar o telhado com as pontas dos dedos, ao mesmo tempo que entregava à mamadeira a três dentro do berço, fora do espaço do quarto, ocupado pelas pilhas de cadernos jogados pelos cantos há tempos. O que mais ela queria era que o caminho desviasse da cozinha, e fosse dar em algum lugar onde a luz não parte de tomada. Valentina viu desde cedo sua chama virar cinza. Entre as quatro paredes, ouvia de seu pai todo dia a mesma frase, onde está aquela puta vadia. Lembrou que mãe se perdia, a sua da janela fez ponto de partida, o que na verdade, era mais fim que começo. De qualquer jeito, ali ficou Valentina. Em descaso com o tempo, que foi veloz e tirou-lhe qualquer jeito de estar na rua, encontrar e ver qualquer movimento que não fossem marcas de pés sujos no tapete que lavaria logo após o meio dia. No futuro, era mais passado que havia. Mas das marcas fez linhas para completar os traços que indicavam outro lugar. Valentina segue fria fora ao portão. Dizia, aos gritos, aos berros, que outro caminho havia. Ninguém escutou. Decidiu seguir sozinha. Largou três na esquina, com a esperança e sorte alguma que havia de que a vizinha deixasse sua casa por um instante, naquele dia, e jogasse as crianças em um caminho menos traiçoeiro do que via em família. Os caminhos são círculos minha menina, mas quem puxa a linha e desfaz é você, dizia o pregador na primeira praça, sentado ao lado da caixa de sapato, único bem, do bem que fez ao pregar uma frase à valentia, nascida em corpo e esquecida em mente de fazer-se.

17/02/2008

um pouco da alma

Em frente à salada, da sacada da sala de jantar, se jogou do prédio! Mas olha a hora, minha gente, nem é hora da novela. Ninguém acreditou! Maria correu aos prantos ao colo de Maria José, e lá ficou, porque do espelho vive a fé, Maria, sem fogão e sem pia. Era tudo que queria, um espaço à menos na mesa na manhã, que na hora é quem lhe faz companhia, porque na xícara não há nem água pro café. Só, percebeu, que nessa vida, estamos todos a pé. E tem gente que vive de luz, e pensa que é deus. Nasceu de presa, virou empresa. No mínimo é rei quem vive onde não se é nem plano. Onde não há plano! Onde o plano não quer chegar! Então escarro na boca do palhaço que vier me dizer que João não era ninguém. Era mais um dos planos de quem quer plano de vôo para onde o dinheiro quiser alcançar. Fica sem trajeto quem não tem nem teto ou chão pra pisar. Se pendura no teto, que o concreto, todo o espaço há de alcançar. Mas desliga a hora, que amanhã você tem que trabalhar. João nunca comeu na vida, mas a vida comeu João. Mas ainda há esperança - há flores que brotam do concreto.

06/02/2008